Tudo indica que o Brasil enfrentará em 2024 a pior epidemia de dengue da história. No primeiro mês e meio, o país já contabilizou 524 mil pessoas doentes — o que equivale a 12 mil infecções a cada dia. Diferentes estados e municípios decretaram estado de emergência.
No mesmo período do ano passado, como comparação, foram perto de 129 mil doentes. Isso significa que o número de casos até agora é quatro vezes o de 2023, que já havia sido um dos piores anos.
A situação é alarmante porque o pico da dengue ainda não chegou — normalmente é em abril — e a doença pode levar à morte. O Ministério da Saúde já registrou 84 mortos neste ano.
De acordo com especialistas ouvidos pela Agência Senado, o excesso de calor e chuva desde o fim do ano passado, a circulação simultânea no Brasil de todos os quatro sorotipos do vírus da dengue e o crescimento das cidades estão entre as razões mais evidentes da explosão da doença.
Eles apontam que os cidadãos em geral também são responsáveis e que o poder público — embora isso nem sempre seja tão evidente — tem uma parcela grande de culpa pela atual epidemia.
O mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus da dengue, põe seus ovos à beira de água parada, seja ela limpa ou não. Os ovos eclodem quando a temperatura está alta. Dentro dessa água, as larvas se desenvolvem até se transformarem em mosquitos.
As condições extremas de calor e umidade derivam tanto do El Niño (fenômeno climático originário na costa pacífica da América do Sul que ocorre irregularmente de tempos em tempos) quanto das mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global.
A presença dos quatro sorotipos no Brasil ao mesmo tempo é uma situação atípica. Quando se infecta uma vez, a pessoa fica imune àquele sorotipo específico, mas permanece suscetível aos demais. Quanto mais sorotipos estiverem em circulação, maiores serão as chances de quem já se infectou ficar doente de novo.
Na segunda infecção, a dengue é mais agressiva e o doente corre o risco de desenvolver a forma hemorrágica, que pode matar.
Quanto ao crescimento das cidades, a dengue se prolifera com mais velocidade quando há muitas pessoas vivendo próximas umas das outras, já que o mosquito infectado tem mais vítimas potenciais ao seu redor. Em 2010, o Brasil tinha 191 milhões de habitantes. Em 2022, 203 milhões.
Segundo os especialistas, a população falhou na eliminação dos pontos de água parada em casa. Existem os lugares mais óbvios, que os agentes de combate a endemias localizam com facilidade, como ralos, pratinhos dos vasos de plantas, caixas d’água descobertas ou com tampa quebrada e latas e pneus que ficam no quintal.
Existem também criadouros do mosquito que são menos óbvios, entre eles as lajes expostas e as calhas (canaletas no telhado que recolhem e escoam a água da chuva). Basta que folhas de árvore se acumulem na calha para que a água fique perigosamente empoçada. A esse tipo de lugar, os agentes dificilmente têm acesso, e a solução fica nas mãos dos próprios moradores.
O presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), Fabio Baccheretti, afirma:
— O comportamento tradicional da população é o relaxamento. Até um ou dois meses atrás, as pessoas negligenciavam o problema do Aedes aegypti. Agora que a dengue explodiu e talvez tenhamos o pior ano em número de casos na nossa história, vemos todo mundo preocupado e correndo atrás de água parada dentro de casa. Com as vacinas, o comportamento é parecido. Quando as pessoas pararam de ver a paralisia infantil, por exemplo, relaxaram na vacinação das crianças, que chegou a níveis muito baixos nos últimos anos. Quando se trata de doença, o relaxamento é perigoso.
Baccheretti, que também é secretário de Saúde de Minas Gerais, lembra que os cuidados precisam ser tomados pela comunidade inteira:
— Mesmo que uma pessoa faça o dever de casa e elimine os criadouros, ela ainda poderá pegar dengue, porque o mosquito consegue voar por cerca de um quarteirão. A negligência de uma pessoa pode afetar todas as que estão ao redor. É preciso que o pensamento seja coletivo.
O Aedes que sugou o sangue de uma pessoa doente contaminará as pessoas que ele picar em seguida. Se o mosquito que puser os ovos estiver infectado, a sua prole já nascerá com o vírus.
Os especialistas ressaltam que o poder público também responde pela atual explosão da dengue.
O presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Hisham Mohamad Hamida, diz que um dos erros está nas campanhas educativas, que não vêm atingindo o objetivo de mudar o comportamento das pessoas em relação à água parada:
— Entre ano e sai ano, vemos sempre a mesma mensagem sendo transmitida da mesma forma. Isso banaliza a doença, e as pessoas não prestam atenção nem sentem que ela é grave.
O sanitarista Jonas Brant, coordenador da Sala de Situação de Saúde da Universidade de Brasília (UnB), entende que é injusto jogar sobre a população toda a responsabilidade pela epidemia:
— O governo, seja ele federal, estadual ou municipal, é o ator que deve organizar estratégias e coordenar os esforços da sociedade para resolver o problema.
Ele concorda que as campanhas educativas não têm funcionado:
— Não podemos continuar usando as mesmas estratégias de comunicação de 20 ou 30 anos atrás. Já está claro que a linguagem adotada é frágil e não consegue engajamento. As peças publicitárias são genéricas, não são específicas para a realidade de cada comunidade. Não adianta falar sobre água em pneu numa região onde só existe prédio e ninguém tem pneu ao ar livre. Não adianta falar sobre vaso de planta num lugar onde o problema é o lixo que se acumula na rua ou em terreno baldio.
Brant continua:
— Os mecanismos de contratação do poder público favorecem as grandes empresas de publicidade. A mensagem não consegue atingir a grande massa porque quem elabora as campanhas publicitárias mora em cidade grande, têm certo nível social e não vive a realidade da maioria da população.
Ele diz que as redes sociais, com seus inúmeros nichos e “bolhas”, precisam ser mais bem exploradas e que o poder público deve buscar o apoio de diferentes atores locais para efetivamente mobilizar a população, como líderes comunitários, associações de moradores e líderes religiosos.
— Recentemente, a ministra da Saúde falou em cadeia de nacional de rádio e televisão sobre a dengue. Os jornais estão cobrindo exaustivamente o tema. Existem campanhas com a imagem do mosquito. Isso é importante, mas não suficiente. Falta o engajamento local promovido por um líder religioso, por exemplo, que está dentro da comunidade e pode orientar as pessoas conforme as condições daquele território. No passado, cada Secretaria de Saúde tinha um profissional de mobilização social, encarregado de mapear os atores-chaves locais e envolvê-los nas campanhas. Essa figura, infelizmente, não existe mais.
Brant também entende que as escolas têm um papel importante na conscientização dos jovens e cita o Programa Saúde na Escola, criado pelo governo federal em 2007, que prevê parcerias entre as autoridades de saúde e as de educação para que os estudantes da rede pública aprendam sobre a prevenção de doenças.
— Esse programa precisa ser fortalecido. Os impactos dele ainda não são grandes porque normalmente é uma atividade das equipes de saúde dentro da escola ou então um trabalho das próprias escolas sobre saúde. Quando a saúde e a educação trabalham sozinhas, o programa não funciona bem. Para haver o impacto necessário, é necessário um trabalho conjunto das duas áreas — explica o sanitarista da UnB.
Ele ainda menciona o congelamento das verbas públicas disponíveis para a saúde a partir de 2017, no governo Michel Temer, quando entrou em vigor a emenda constitucional que impôs um teto aos gastos públicos.
— O teto de gastos teve um impacto negativo em todo o serviço público, com desinvestimento em áreas importantes, rebaixamento de salários e desmobilização de funcionários públicos, que passaram a buscar atividades mais bem remuneradas — afirma.
A emenda do teto de gastos foi derrubada no ano passado, substituído pelo chamado novo arcabouço fiscal.
O senador Humberto Costa (PT-PE), que já foi ministro da Saúde e hoje é presidente da Comissão de Assuntos Sociais (colegiado do Senado que cuida dos temas de saúde), avalia que muito da situação atual da dengue tem ligação também com o governo Jair Bolsonaro:
— Ao mesmo tempo que a pandemia de covid-19 demandou muito do SUS [Sistema Único de Saúde], houve um desmonte dos serviços públicos de saúde, incluindo a vigilância de insetos vetores de doenças. O ano passado, quando o governo Lula tomou posse, precisou ser dedicado à reestruturação do sistema.
O senador apresentou em 2011 um projeto de lei que permitia que os agentes de combate a endemias entrassem em imóveis não habitados para combater o mosquito, sem que isso representasse invasão de domicílio. A proposta não chegou a passar pela votação final porque o governo enviou ao Congresso em 2016 uma medida provisória com essa mesma previsão que foi aprovada e se tornou lei (Lei 13.301).
Para o presidente do Conasems, os secretários municipais de Saúde não podem fazer mais, seja na prevenção da dengue, seja no tratamento dos infectados, porque os recursos financeiros disponíveis são insuficientes:
— Os municípios são obrigados pela Constituição a investir pelo menos 15% de seus recursos na saúde, mas vêm investindo, em média, 24%. Em 2022, aplicaram no SUS quase R$ 50 bilhões acima do mínimo constitucional. Recebemos recursos federais e estaduais, mas eles não bastam. Muitos municípios não conseguem ter a quantidade necessária de agentes de combate a endemias — afirma Hamida, que também é secretário de Saúde de Pirenópolis (GO).
De acordo com ele, mais recursos permitiram às prefeituras investir em novas tecnologias, como os drones, que mapeiam as áreas de difícil acesso que acumulam água e podem até lançar larvicida sobre elas com precisão.
As novas técnicas incluem as ovitrampas, que são armadilhas de ovos que permitem verificar se a população do Aedes aegypti numa determinada área está diminuindo ou aumentado, e os mosquitos geneticamente modificados, que são liberados numa área infestada, reproduzem-se com os insetos selvagens e geram prole só de mosquitos machos, que são incapazes de transmitir o vírus da dengue.
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